Este blog surgiu em 2009 com o intuito de relatar uma "Viagem Incógnita" que teve início com um bilhete só de ida para a Tailândia. Uma viagem independente, sem planos, a solo, que duraria quatro anos. Pelo meio surgiu um projeto com crianças carenciadas do Nepal que viria a resultar na criação da Associação Humanity Himalayan Mountains. Assim, este blog é dedicado às minhas viagens pelo Oriente, bem como a esta "viagem humanitária", de horizontes longínquos, no Nepal.

sábado, 8 de agosto de 2015

Tragédia em 2015

No dia 25 de abril deste ano, o Nepal foi assolado por um sismo de magnitude 7.9 na escala de Richter, o pior a atingir este país asiático nos últimos 80 anos. O gigantesco abalo foi suficientemente forte para ser sentido na Índia, Bangladesh, Tibete e Paquistão.
Kathmandu, capital do Nepal, foi particularmente afetada. Bairros antigos, estruturas frágeis de madeira e barro, não resistiram ao sismo e simplesmente ruíram. Edifícios históricos, templos do séc. XVII, ficaram reduzidos a escombros. Outros mais modernos tombaram, ruas e estradas estalaram.
O vale onde fica situada a cidade de Kathmandu tem sete locais que a UNESCO classificou como património cultural da Humanidade, promovendo o património centenário do país que incluía muitos templos budistas e hindus e outros edifícios emblemáticos. A maior parte dos monumentos e praças com este selo de importância mundial estão agora em ruínas.
Três dos locais classificados eram as praças centrais, com os seus palácios e templos de Kathmandu, Patan e Bhaktapur. Os restantes locais eram santuários religiosos – Swayambhunath, Bouddhanath, Pashupatinath e Changu Narayan. Segundo a UNESCO, estes edifícios eram “representativos da tradição cultural e multiétnica das pessoas que se instalaram naquela parte remota do vale dos Himalaias nos últimos 2.000 anos”.
A Torre Dharahara, uma estrutura de nove andares e cerca de 62 metros de altura, construída em tijolo em 1832 e que se tornou num símbolo da capital, oferecendo vistas fantásticas da sua plataforma, ficou reduzida a pó.
 
O governo nepalês, totalmente esmagado pela enormidade do desafio que o país enfrenta, declarou estado de emergência. O número de mortes ia aumentando, feridos aos milhares, centenas de desaparecidos. O primeiro-ministro nepalês, Sushil Koirala, admitiu que o número de mortos causados pelo terramoto rondaria os 10.000 e mais de 4,6 milhões de pessoas foram afetadas pela tragédia. Várias equipas de busca e salvamento chegavam ao país que se encontrava num caos.
Ainda assim, alguns milagres acontecem entre os escombros quando pessoas, de todas as idades, são encontradas com vida. No meio da destruição surge a esperança de encontrar mais sobreviventes ao desastre.
O abalo sísmico desencadeou também uma avalanche no Monte Evereste causando a morte de dezoito montanhistas no Campo Base. Estima-se que mais de mil pessoas estariam na montanha no momento do tremor, sendo incerto o número de desaparecidos em acampamentos a maiores altitudes. Imagens captadas na hora demonstram bem a impotência humana perante a força da Natureza.
Um pouco por todo o lado acendem-se velas pelas vítimas e, no próprio país, milhares de corpos vão sendo cremados segundo os preceitos hindus da população.
Um crescente sentimento de desespero espalha-se na devastada capital que continua a ser convulsionada por tremores secundários. Os sobreviventes amontoam-se nas praças, a céu aberto. Há falta de abrigos e mantimentos. Ruas da cidade com cerca de 1,2 milhões de habitantes tornam-se intransitáveis, não só devido aos danos do terramoto, mas porque dezenas de milhares de pessoas aí passaram a residir.
Pouco tempo depois, a 12 de maio de 2015, ocorreu um segundo grande terramoto com uma magnitude de 7,3 cujo epicentro foi entre a capital Kathmandu e o Monte Evereste. Mais uns quantos mortos e feridos e mais uns quantos edifícios destruídos, por conta deste tremor.
Entretanto, a ajuda exterior vai chegando ao país mas muitas das provisões amontoam-se no único e azafamado aeroporto internacional com o governo nepalês, que não goza da melhor reputação, a interpor burocracias e entraves, talvez também desconcertado pela inimaginável catástrofe e a falta de um plano de apoio e escoamento de bens em semelhante situação.
Alimentos, medicamentos e abrigos vão sendo distribuídos pela população sobressaltada que logo em seguida é atingida por enorme tempestade e forte ventania. As tendas voam por todo o lado. É o prelúdio da monção que não demora em chegar. Esta estação climática, que normalmente ocorre nos meses quentes de junho a setembro e que é caracterizada por chuva torrencial, anunciou-se mais cedo inundando os abrigos provisórios da população que está nas ruas.
 (Nota: Até aqui todas as imagens foram retiradas da net)
Quem me conhece calcula o impacto que esta tragédia teve em mim. Conheço o Nepal desde 2005 e estive consecutivamente no país nos últimos 5 anos, aí permanecendo por períodos de 5 meses. Tive o privilégio de conhecer todos os monumentos destruídos pelo sismo, nas várias vezes em que visitei o Nepal. Subi ao cimo da Torre Dharahara em 2006. Está tudo relatado nos meus blogs – Viagem Partilhada e Viagem Incógnita. Constatando o meu desespero e noites sem dormir, familiares imediatamente enviam ajuda para o país, como certamente tantos outros portugueses, através de uma organização.
Felizmente, a cidade de Pokhara, 200 km a oeste de Kathmandu, onde se encontra o orfanato e a maioria dos meus amigos nepaleses, foi poupada a uma situação mais dramática não se registando elevados danos ou perdas. O edifício onde funciona o lar precisou de alguns reparos mas as crianças, apesar de assustadas, estavam bem.
Tal como os moradores da cidade em geral, preferiam dormir ao relento já que as réplicas do abalo eram constantes, chegando algumas a ter intensidade superior a seis graus. E é através da Jyoti, do orfanato, e de outros amigos de Pokhara, que vou sabendo mais notícias do que se passa no terreno.
(foto de agosto de 2014)
Recordo aqui o acordo assinado no ano passado, na presença de um advogado, e que mencionei num dos posts anteriores: Através de amigos nepaleses, a quem ajudei nos seus negócios (e em vez de a dívida me ser restituída a mim), estava a ser mensalmente distribuído um determinado contributo financeiro ao orfanato e a ser prestada ajuda a instituições escolares, que perfaziam um total de 1500 euros anuais.
Acontece que, após o terramoto, estes amigos ficaram com os seus negócios paralisados e com a impossibilidade de ajudar estas instituições até porque o auxílio agora urgia na zona mais afetada pelo sismo, aquela onde se deu o epicentro: Gorkha, uma região situada a meia distância entre Pokhara e Kathmandu, de onde iam chegando notícias de aldeias totalmente arrasadas.
São aldeias remotas que se alcançam por caminhos precários ou por simples trilhos e que a chuva e os deslizamentos de terras mantêm ainda mais inacessíveis. Vai-se então percebendo que os recursos e fundos gentilmente doados para o desastre no Nepal se estavam a concentrar nas áreas mais atingidas, mas os casos isolados estavam a ser ignorados pelo governo e pelas organizações internacionais.
Os nepaleses mantêm fortes laços comunitários e muitos habitantes de Pokhara, que optaram por encerrar os seus já comprometidos negócios, mobilizam-se para levar eles próprios ajuda às povoações mais distantes do distrito de Gorkha, onde o cenário é desolador. Amigos meus, ligados à indústria hoteleira, deslocaram-se por várias vezes a diferentes localidades.
Levam mantimentos, água, agasalhos, abrigos, medicamentos, a terras que estão sem água potável, sem luz, com pessoas a tentar sobreviver em condições degradantes e que correm o risco de proliferação de doenças. Do aeroporto doméstico de Pokhara começam também a descolar helicópteros que partem com bens de primeira necessidade e regressam com feridos, em lágrimas, incapazes de caminhar ou mesmo de falar.
Por cá tento fazer alguma coisa para ajudar e procuro formas de garantir, a baixo custo, que as verbas cheguem a quem realmente precisa, no Nepal. Passo dias inteiros em feiras a vender "tarecos" para fazer nem vinte euros, dinamizo exposições de pintura em que não se vendem quadros e encomendo a impressão de pequenos calendários de bolso.
 
E esta foi a forma de angariar alguns fundos, principalmente através do empenho de simpáticos alunos da EB Ferreira de Castro, em Sintra, sensibilizados para esta causa,  e cujos resultados foram os seguintes: Turma 5ºE - 69€; Turma 5ºF - 65€; Turma 6ºE - 58€; Turma 6ºA - 127€ (um obrigado especial ao Bruno Vaz que só ele recolheu 84€!). Também a Escola Profissional de Leiria, através de amigos e familiares do corpo docente, angariou a quantia de 77€.
Conseguiu-se assim o montante de 400€ que foram enviados para o Nepal, em nome das "Humanity Mountains" ("Montanhas de/a Humanidade"), no princípio de julho. Agradeço ao meu amigo Dhurba Subedi, nepalês residente em Portugal há cinco anos, o ter-me facilitado a entrega deste donativo ao cuidado de dois amigos de Pokhara (O Raj e a Jyoti), sem custos.
O meu amigo Raj Lama, pintor, recebeu parte do dinheiro, comprou bens de primeira necessidade e deslocou-se com um amigo, de mota, à aldeia de Khampur que fica a cerca de duas horas de Pokhara. Depois transportaram os sacos às costas e caminharam até ao lugarejo onde distribuíram os mantimentos por famílias necessitadas que ficaram com as suas casas destruídas e que vivem agora em tendas e pequenos abrigos.
Uma das famílias em situação crítica tem uma criança deficiente e o seu avô é cego. O Raj enviou-me as imagens, incluindo um vídeo, sobre essa viagem e que foram partilhadas na minha página de Facebook "Humanity Mountains".
Por sua vez, a Jyoti, que dirige o lar de crianças, pegou no dinheiro que também recebeu da minha/nossa parte e levou ajuda a povoações de Lamjung, Dhading e Gorkha, na zona do epicentro.
Recorde-se que eu havia pernoitado com a Jyoti em casas destas, agora destruídas, quando fui com ela tratar de papelada, junto de familiares, referente a crianças que estão no lar em Pokhara (nomeadamente a Rupa, irmã da Ruth).
Esta aldeia atinge-se após uma hora de caminhada, depois de sairmos do terceiro autocarro desde Pokhara e que nos deixa no ponto mais próximo onde atravessamos um ponte de metal pedonal sobre o rio Marshyangdi.
A Jyoti distribuiu a verba por doze famílias que haviam ficado sem nada. Serviu essencialmente para compra de alguns alimentos. Evidentemente, a ajuda necessária é muito maior, as pessoas necessitam de tudo para recomeçar as suas vidas, mas pelo menos sabemos que este pequeno donativo enviado de Portugal fez alguma diferença.
Em Pokhara, as crianças do orfanato ficaram sem escola mais de um mês, tal como um milhão de crianças no Nepal. O sismo destruiu inúmeros estabelecimentos escolares. Como o tremor de terra se deu a um sábado, as crianças estavam em casa com as famílias. Muitas contavam-se entre as vítimas das aldeias, outras tantas perderam os seus familiares.
O facto de estas crianças não irem à escola aumenta as probabilidades de caírem nas mãos de traficantes ou de serem vítimas do trabalho infantil. Mas apesar de se encontrarem numa situação vulnerável, as crianças estão sempre ansiosas por aprender.
 
O regresso às escolas no Nepal deu-se, precisamente, no dia um de junho, Dia Internacional da Criança. Nas aulas deu-se prioridade aos jogos e aos diálogos para ajudar na recuperação do trauma.
As crianças do lar agradecem a verba de 400€ enviada de Portugal.
Neste país traumatizado pelo sismo, os deslizamentos de terra intensificaram-se este ano devido às encostas fragilizadas das montanhas. Antes da época das chuvas, mais de mil deslizamentos de terra tinham sido registados, ceifando vidas e destruindo mais culturas, estradas e sistemas de irrigação.
Com a chegada em força da monção, no mês de julho, aldeias foram dizimadas, inclusive locais que bem conheço e onde visitei escolas, perto de Pokhara e do circuito de trekking mais popular do país, o Annapurna. Os deslizamentos provocam o bloqueio de rios e consequentes inundações. Centenas de milhares de pessoas ficaram desabrigadas indo viver para a floresta, sem nada.
E o número de mortes continua a subir no país, fustigado neste ano de 2015, e que já constava da lista de um dos mais pobres do mundo. País este onde é urgente o reforço e o investimento no tipo de construção das casas.
Para além disso, aumenta a insegurança alimentar devido à destruição dos campos e das culturas de que depende a maioria do povo para a sua subsistência. As pessoas perderam grande parte das suas colheitas de arroz, milho, trigo e painço, e sementes para o plantio futuro, que agora estão enterradas sob casas que desabaram. Bovinos, aves e outros animais foram mortos e muitas ferramentas agrícolas extraviadas.
A agricultura é assegurada principalmente por mulheres, uma vez que muita da população masculina se encontra a trabalhar em países do Médio Oriente, lutando por uma vida melhor para as suas famílias. Estas famílias são mais vulneráveis à má nutrição, ficando crianças e jovens também vulneráveis ao tráfico humano.
Perante tamanha calamidade, o Nepal precisará de ajuda durante os próximos anos. Uma forma de o fazer é visitar este lugar de paisagens encantadoras, contribuindo assim para a recuperação do turismo e tendo a oportunidade de testemunhar a simplicidade e a cordialidade do povo.
É importante sair da zona de conforto para nos aproximarmos do mundo real, dos outros. É importante repensar muita coisa nesta humanidade. É importante deixar de haver "terceiros mundos". É importante um outro olhar. No fim de contas, talvez eles nos ensinem a recuperar muitos dos valores humanos perdidos no nosso mundo “civilizado”...