Este blog surgiu em 2009 com o intuito de relatar uma "Viagem Incógnita" que teve início com um bilhete só de ida para a Tailândia. Uma viagem independente, sem planos, a solo, que duraria quatro anos. Pelo meio surgiu um projeto com crianças carenciadas do Nepal que viria a resultar na criação da Associação Humanity Himalayan Mountains. Assim, este blog é dedicado às minhas viagens pelo Oriente, bem como a esta "viagem humanitária", de horizontes longínquos, no Nepal.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Pokhara e os amigos

Viemos, eu e a Jyoti, para Pokhara no dia 8 de setembro de micro-van, carrinha de “nove lugares” usada como transporte público que deveria ser mais rápida que o autocarro. Mas isso é quando a coisa corre bem e se tem a sorte de não apanhar um qualquer engarrafamento na estrada. Apanhámos um acidente, longas filas de espera, demorámos oito horas para percorrer os 200km que distam de Kathmandu a Pokhara. Sobeja-nos o tempo para contemplar a paisagem. 
Chego a Lakeside (zona junto ao lago Fewa, a mais turística da cidade, repleta de hotéis e restaurantes) no rescaldo da monção. Os dias apresentam-se geralmente quentes e soalheiros e à noite é chuva a cair a cântaros.
As nuvens tendem agora a ser mais generosas e vão-se dissipando para deixar vislumbrar os majestosos picos nevados da cadeia do Annapurna.
Não se notam grandes danos do terramoto em Pokhara, as casas e aldeias afetadas ficam na área circundante.
Sou recebida com a habitual gentileza no hotel do costume, a Machhapuchhre Guest House, pelo pessoal já conhecido. O edifício já tem alguns anos e nem sempre tudo funciona bem nas instalações mas gosto do ambiente simples e familiar, bem como da vista para o lago do meu quarto e do terraço. E aqui nos divertimos muito em festas improvisadas.
Deambulo entre a guest house e os hotéis Liberty e Board Walk, também geridos pela mesma família. Sinto-me em casa nestes e noutros locais há muito conhecidos.
O tempo aqui parece passar demasiado rápido e torna-se escasso para visitar e estar com tantos amigos que aqui tenho, alguns desde há dez anos (visitei a primeira vez o Nepal em dezembro de 2005), a maioria desde há cinco anos. E logo novas amizades vão surgindo pois sendo amiga do “bhai” ou do “dhai” (irmão mais novo / mais velho) logo me transformo na “sis” ou “didi” (irmã).
De qualquer forma, é fácil criar laços estreitos com esta gente simples e acolhedora. Sou convidada, todos os dias, para comer com alguém, sempre o dal bhat, claro. E não paro em andanças num rodopio constante. Valem-me muitas vezes as boleias nas motas dos amigos. Quantas vezes me dirijo para o quarto para descansar e só lá consigo chegar à noite, estafada...
Para além dos amigos nepaleses, reencontrei em Pokhara a Steffie, alemã, que agora se dedica ao comércio de produtos nepaleses e indianos sobretudo nos mercados de Natal do seu país. Depois a Nona, espanhola, que também ficou ligada ao lar das crianças desde que a conheci há quatro anos. Através dela vim a conhecer o Miguel, também espanhol, que há muito vive no Nepal e gere um hotel na zona oeste do país, menos explorada turisticamente. E conheci a Susana, polaca, que aqui estava na altura do grande terramoto.
Depois vieram as amigas portuguesas Sofia e Fátima e juntas visitámos alguns dos locais mais badalados e assistimos a espetáculos de danças típicas.
A Fátima ficou apenas duas semanas mas ainda teve a oportunidade de experienciar um Nepal mais autêntico e rural quando fomos convidadas por uma amiga minha para almoçar em casa dos sogros, fora da cidade. Tal como a Sofia, andou pela primeira vez de mota, com os meus amigos, em Pokhara. Lamento não ter tido mais tempo disponível para ser a guia turística esperada.
A jovem e dócil Sofia ficou cerca de dois meses e muitas foram as nossas aventuras e momentos bem passados. O hiking, o trekking, as crianças, os convívios, as feiras e os mercados, as bandas musicais, os passeios em todo o tipo de transportes e a cumplicidade na forma de sentir este povo e este país... Gosto de conhecer pessoas assim, leves e independentes, e isso dá um gozo especial quando se trata de conterrâneos.
Mas são as crianças, e principalmente a Jyoti, que tomam muito do meu tempo quando estou em Pokhara. Ora é papelada a tratar ora são casos de hospitais ora são os “big problems” que agora interferem na vida do lar. E lá vamos, de local bus (autocarro) ou a pé para um lado e para outro, na maior parte dos dias. Mas disso darei conta noutro post.
Vão-se notando sinais de "progresso" em Pokhara, a estrada para o lado norte de Kahare (a parte mais calma de Lakeside) foi finalmente arranjada e há mais cuidado com os espaços públicos, principalmente junto ao lago. Em contrapartida, isto arrasta uma construção desenfreada, com locais de comércio e hotéis novos a irromperem por todo o lado, algo que não me parece vir a ser bom num futuro próximo.
De qualquer modo, passear junto ao lago, relaxar numa das esplanadas ao longo do caminho, apreciar a paisagem, andar de barco ou saborear iguarias típicas numa das casas de pasto locais que aí se encontram é algo muito aprazível, a qualquer hora do dia.
 
Depois há ainda aquela atmosfera bucólica com vacas e búfalos a deambularem livremente pelas ruas ou a banharem-se no lago. E quando a visão dos cumes brancos surge no horizonte, Pokhara revela o seu encanto e a razão de ser um dos locais favoritos para os turistas no Nepal.
As festas e festivais também se sucedem neste país que tanto festeja feriados hindus, como budistas, muçulmanos e católicos. Há sempre uma razão para celebrar e encerrar locais administrativos. Mas é claro que os hindus têm mais visibilidade e impacto e trazem um acréscimo de cor e animação ao dia a dia. Assisti a vários festivais enquanto estive no Nepal nesta reta final do ano.
O festival Teej acolhe a estação das monções, é dedicado à deusa Parvati e à sua união com Lord Shiva e é comemorado em particular pelas mulheres com canções, danças e rituais de oração durante três dias. As mulheres vestem roupas novas, usam vários adornos e pintam as mãos e os pés com henna, um corante natural de cor avermelhada. Decorreu em meados de setembro.
Dois dias depois veio Bishokarma puja, celebração dedicada ao Senhor da arte, arquitetura ou engenharia. É uma saudação a todos os que trabalharam no campo da física para o bem comum e uma homenagem a todos aqueles que inventaram a tecnologia. Trabalhadores e artesãos pedem para aumentar a produtividade e ganhar inspiração divina para a criação de novos produtos e os meios de transporte são benzidos e enfeitados.
Em outubro chegou o Dashain, o festival mais popular, o mais longo e auspicioso celebrado no país, correspondente ao nosso Natal. A família reúne-se, trocam-se oferendas e os  mais velhos colocam a "tika" (uma preparação de arroz, yogurte e pó vermelho) na testa dos mais novos como forma de os abençoar para os anos seguintes. Constroem-se baloiços feitos de bambu e corda de coco pois acredita-se que o balanço vai tirar maus sentimentos e substituí-los por novos e bons proporcionando o rejuvenescimento dentro de si mesmo. Pastorear papagaios é também uma maneira de celebrar o Dashain uma vez que serve para lembrar a Deus que a monção e os dias de chuva terminaram. Dura cerca de quinze dias.
Em meados de novembro foi a vez do festival hindu Tihar, também chamado Dipawali ou festival das luzes, que se prolonga por cinco dias dedicados a diferentes figuras religiosas. No último dia as pessoas  deslocam-se à casa da família onde os irmãos trocam o ato de colocar a tika, neste caso com várias cores, num gesto que significa o desejo de uma longa vida. Durante o festival as ruas são enfeitadas com mandalas coloridas, acendem-se velas e incensos. Grupos de jovens dançam ou cantam de loja em loja pedindo guloseimas ou dinheiro aos donos e clientes com o qual farão mais tarde um piquenique.
Neste período entre Dashain e Tihar as escolas e locais públicos estão encerrados. As férias escolares têm a duração de um mês e a criançada fica em casa. Algumas crianças do orfanato deslocaram-se às aldeias onde têm familiares e aí permaneceram. E eu fui com a minha amiga Sunita levar a Shanti à aldeia, no distrito de Parbat, onde vive a sua avó. Foi mais uma oportunidade de admirar a beleza rural deste país e partilhar da forma simples como vivem as pessoas.
Apanhámos dois autocarros e andámos uma hora a pé subindo até à pequena e bonita localidade rodeada por campos de arroz e com vista para a cadeia dos Himalaias. Para além de conhecer a mãe da Sunita, avó da Shanti, conheci a irmã desta, a Susma, de sete anos de idade que permanece na aldeia. E logo sou convidada para jantar por pessoas que me querem conhecer, raros são os turistas ali.
No dia seguinte, eu e a Sunita regressámos a Pokhara deixando a Shanti em casa da avó. No regresso de autocarro deparámo-nos com bastantes e enormes rebanhos de cabras e carneiros que, nesta época do Dashain, são conduzidos das montanhas para o vale para serem comercializados. A carne de cabra é a mais consumida durante os quinze dias do festival e os rituais de sacrifícios nos templos são ainda praticados pois acredita-se que as deusas Durga e Kali são apaziguadas por sacrifícios de animais...
No entanto, nos últimos anos, ativistas dos direitos dos animais no país têm-se insurgido contra estes atos de chacina e apelam às pessoas para que, em vez de sangue, ofereçam frutas e legumes às deusas.
Com os cortes de energia diários de cerca de dez horas, os problemas com o abastecimento de água corrente, os painéis solares que nem sempre funcionam para aquecer a água, a internet que vai e vem não se sabe bem quando, a sucessão de festas, feiras, feriados e festivais com alguns dias de greve à mistura devido a questões políticas... tudo estaria dentro de uma certa normalidade por estas bandas não fosse a grande quebra na indústria do turismo desde o terramoto de abril. Lakeside vive precisamente à conta do turismo, de modo que a situação afetou todos os habitantes que, na sua maioria, recorrem à banca para suportar os seus compromissos financeiros, como o aluguer de lojas, restaurantes e hotéis.
A aproximação da época alta (outubro/novembro) trazia uma certa expectativa em relação à possibilidade de recuperação do comércio local. Mas um outro acontecimento fez cair por terra esta suposição. A Nova Constituição do Nepal, que há muito era aguardada, foi finalmente implementada no dia 21 de setembro de 2015. O facto foi celebrado com bastante euforia por muitos e marcado com dois dias de greve por parte dos que ficaram descontentes.
O Nepal é um país bastante diversificado, com vários grupos étnicos e indígenas que falam mais de 100 idiomas e ainda dividido por um sistema de castas altas e baixas. Nem todos sentem da mesma forma o estipulado no novo documento. Grupos de mulheres e ativistas dos seus direitos dizem que a nova Constituição discrimina as mulheres nepalesas no que já é uma sociedade patriarcal. As manifestações foram tendo lugar pelas ruas da cidade.
O novo documento também elaborou fronteiras provisórias para sete estados e algumas comunidades étnicas discordam dos limites propostos para as novas províncias. Esta inquietação foi especialmente intensa no Terai, longa faixa de planície do sul do Nepal na fronteira com a Índia, onde  o povo indígena  Tharu se insurge contra a ideia de ser dividido. No leste do Terai as comunidades Madhesi, étnica e socialmente perto dos indianos, reclamam que sempre enfrentaram discriminação e falta de aceitação por parte do Estado nepalês e há três meses que se revoltam contra a situação. A zona está em estado de polvorosa, com conflitos violentos e até as escolas encerraram.
A vizinha Índia decidiu interferir na política interna do país e tem apoiado esta disputa originada por castas minoritárias que residem junto à fronteira e que se sentem desprezadas pela Nova Constituição. Assim, interpôs um bloqueio nas fronteiras do sul entre os dois países vizinhos impedindo a entrada de bens essenciais no Nepal que, em muito, depende daquele país. Filas de camiões com provisões, incluindo petróleo e gás, acumulam-se há 3 meses junto à fronteira dando origem a uma situação que agora beneficia quem se dedica ao mercado negro. Um litro de combustível chega a custar cinco ou seis vezes mais, cerca de 5 euros. As filas junto aos postos de abastecimento são diárias e alternam entre camiões, carros e motorizadas.
Consequentemente, os transportes públicos tornaram-se mais esporádicos, andam sempre a abarrotar e surge a oportunidade para cobrar mais aos passageiros.
O gás é outro bem em falta e as filas de abastecimento são também diárias com as pessoas a passar horas junto às botijas vazias que trocarão por botijas cheias ou meio cheias. Chegam a dormir na rua e a passar várias noites ao relento nestes meses frios de inverno. Quem não pode esperar chega a pagar cerca de 70 euros em vez de 13. Devido à escassez do gás cozinha-se agora essencialmente a lenha, em hotéis e restaurantes inclusive, tendo aumentado a comercialização da madeira.
O óleo alimentar é outro dos bens em falta e agora mais do que nunca utiliza-se o "ghee", manteiga clarificada e purificada, livre de toxinas, um produto caseiro saudável feito a partir do leite de búfalo.
Toda esta situação no Nepal devido ao bloqueio das fronteiras a sul com a Índia, e que não se prevê quando irá terminar (a solução poderá vir da vizinha China), já trouxe mais prejuízos que o próprio terramoto. É caso para dizer que, decididamente, o ano de 2015 não está a ser nada bom para o Nepal. Mas este povo, conhecido pela sua resiliência, continua a sorrir e a celebrar o dia-a-dia da forma que melhor pode. Os casamentos hindus acontecem, o espírito cristão do Natal está no ar e Pokhara prepara-se para celebrar em cheio a chegada do Novo Ano ocidental.
Haja esperança e muita alegria!

2 comentários:

  1. Maravilhosa descrição do quotidiano nepalês e fotografias belíssimas. Um blogue que dá gosto seguir e recomendar.Obrigada,Lya.

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    1. Querida Guida, obrigada pelas tuas palavras que só agora vi... Um beijinho.

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