Este blog surgiu em 2009 com o intuito de relatar uma "Viagem Incógnita" que teve início com um bilhete só de ida para a Tailândia. Uma viagem independente, sem planos, a solo, que duraria quatro anos. Pelo meio surgiu um projeto com crianças carenciadas do Nepal que viria a resultar na criação da Associação Humanity Himalayan Mountains. Assim, este blog é dedicado às minhas viagens pelo Oriente, bem como a esta "viagem humanitária", de horizontes longínquos, no Nepal.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

De Mbour a Toubacouta

A carrinha ‘7 places’ avariou a meio do caminho, mudámos para outra, duas horas e meia depois chegávamos a Mbour. Um taxista queria levar-me para Saly, que lá é que havia hotéis, e mandei-o dar uma volta. É uma zona turística e mais cara, praia, eu queria ver a cidade. Logo outro, um jovem educado, me conduziu a um hotel local mais adiante, perto da estação rodoviária. E combinei visitar um pouco a zona com ele, após o almoço.

Mbour é um destino turístico situado na Petite Côte, aproximadamente 80 quilómetros a sul de Dakar. As suas principais indústrias são o turismo, o processamento de amendoim e especialmente a pesca. Aliás, Mbour é o segundo maior porto pesqueiro do Senegal, a seguir a Dakar.
Tem um concorrido mercado diário de frutas e legumes, especiarias, artesanato e principalmente de peixe. O mercado fica junto à praia e é aqui que melhor apreciamos a vida dos seus habitantes.
As águas senegalesas albergam diversos peixes de grande porte: espadarte, espadim-azul, atum, tarpão, barracuda, peixe-serra e várias espécies de tubarão. A praia de Mbour recebe diariamente centenas de pirogas artesanais e multicoloridas que regressam da pesca. 
No meio da agitação que se instala, existe uma estrutura perfeitamente organizada. Homens carregam o peixe e o marisco para a praia que são depois devidamente separados por categorias. 
As mulheres escolhem, cortam e preparam o peixe, algum para venda no local e muito para exportar, tanto para os países vizinhos como para a União Europeia e para o resto do mundo. Um verdadeiro festival de raias, crias de tubarão, peixes-voadores, barracudas, douradas, linguados... 
Infelizmente, a cidade de Mbour também ficou marcada pela tragédia de um barco que daqui partiu com 140 migrantes com destino às Ilhas Canárias e que naufragou a 29 de outubro de 2020, ao largo de Saint-Louis.

Seguimos para Saly Portudal onde Dinis Dias aportou em 1444 e que viria a tornar-se um entreposto comercial português na rota marítima para a Índia. Este próspero entreposto atraía habitantes do interior que vinham trocar os seus produtos por armas ou tecidos. Os europeus (incluindo os franceses que, mais tarde, assumiram o controlo do entreposto) vinham para aqui em busca de tecidos, couros, dentes de elefante, âmbar cinza, pérolas, cavalos e madeira, bem como de escravos.
Hoje, Saly é porventura o local mais turístico do Senegal, com resorts, lojas, casino, todas as comodidades e serviços ao dispor do belo turista, incluindo praia de areia branca, limpa! 
Ao seguirmos para sul, vi uma igreja que me chamou a atenção e pedi ao Mbaye para parar a viatura. Tratava-se da Igreja da Epifania do Senhor em Nianing inaugurada em 2018 para servir a comunidade católica da localidade. A igreja foi premiada pela sua excelência em Design Arquitetónico.
Esta é precisamente uma zona em que há uma grande população de cristãos e muçulmanos que coexistem harmoniosamente, no país da Teranga (hospitalidade senegalesa). E quando chegámos a Joal-Fadiouth visitámos precisamente o cemitério misto de cristãos e muçulmanos, símbolo da tolerância religiosa no Senegal. A população ronda os 50.000 habitantes, na maioria da etnia Serer e a região é conhecida pela sua sociedade matrilinear.
Joal fica no continente, enquanto Fadiouth, ligada por uma ponte de madeira, fica numa ilha de conchas. Outra ponte de madeira liga a ilha ao cemitério que também tem um chão de conchas. Toda a aldeia está construída sobre milhões de conchas acumuladas ao longo de gerações, conchas marinhas que os habitantes locais também utilizam na arquitetura, no artesanato ou para decorar os seus túmulos. As ruas estão cobertas por camadas e camadas de conchas e a ilha não dispõe de transporte motorizado. 
Durante o período colonial, Joal tornou-se um dos maiores entrepostos comerciais do Senegal. No final do século XVI, os comerciantes holandeses e portugueses estabeleceram-se aqui, tal como aconteceu em Saly. Até cerca de 1635, viveu na vila uma comunidade de comerciantes judeus portugueses que foram autorizados a professar abertamente a sua religião.
O estabelecimento de postos europeus na região permitiu a penetração de missionários já no século XVII. Em 1850, foi estabelecida uma missão na aldeia, e o primeiro padre foi aí ordenado em 1885. O primeiro missionário que morreu no Senegal está sepultado no cemitério de Fadiouth com uma cruz branca a assinalar o seu túmulo.
O estuário é povoado por mangais e permeado por braços de mar, muito comuns na costa do Senegal. Estes ‘bolongs’ misturam água salgada com água fluvial e são salpicados por pequenas ilhas de conchas marinhas repletas de embondeiros e acácias. 
Nos mangais abundam aves marinhas (gaivotas, galinholas, garças, pelicanos, flamingos), mas macacos, cegonhas e hienas também podem ser encontrados. Nos troncos submersos nesta água salobra faz-se o cultivo de ostras que podemos degustar nos restaurantes da ilha. Outra atração a visitar são os celeiros palafitas, construídos sobre estacas na água para preservar os cereais caso haja cheias ou incêndios. 
O primeiro presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, figura igualmente importante na literatura africana, nasceu em Joal e é possível visitar o seu local de nascimento, que tem o nome de Mbind Diogoye ("mansão do leão" em Serer).
O Mbaye conduziu-me de regresso a Mbour e aí vou eu em ‘7 places’ para Kaolack.

Em Kaolack recebeu-me uma simpática família contactada através do meu couchsurfer em Dakar. E com eles partilhei o ‘thieboudienne’, o prato tradicional da Senegâmbia,  à base de peixe, arroz e legumes cozidos num molho rico e saboroso, normalmente comido à mão a partir de um grande prato comunitário. O Aliou, professor de inglês, levou-me a visitar as redondezas na sua motorizada.
Kaolack é um importante centro de marketing e exportação de amendoim e tem uma grande fábrica de óleo de amendoim. Fabrico de cerveja, curtimento de couro, descaroçamento de algodão e processamento de peixe também são indústrias importantes. 
A cidade situa-se na margem norte do rio Saloum, a cerca de 100 quilómetros da sua foz, e perto do rio há salinas onde é produzido o sal.
Como centro do ramo Ibrahimiyya da ordem sufi Tijaniyyah, fundada por Ibrayima Ñas, é também um importante centro de educação islâmica. A mesquita Leona Niassene em Kaolack é uma das maiores e mais conhecidas do Senegal.
Depois, a ideia era visitar o baobá sagrado Guy Njulli, de Kaohone, considerado monumento nacional, onde tinham lugar rituais de circuncisão e onde chefes tribais se reuniam. Mas o que se proporcionou foi um belo momento de convívio com o rapaz Baye Fall que ali estava, de tal modo que outros rapazes Baye Fall, assim como várias crianças talibés, se vieram juntar à galhofa. 
E, em consequência, fui chamada à presença do marabu, pelo próprio. Coisa rara de acontecer. Homem afável, de expressão tranquila, conversámos sobre projetos sociais, religião e o problema dos extremismos. Só mais tarde, nas fotos, reparei que o padrão do meu vestido condizia com o da saia que me trouxeram para ir à sua presença. Desígnios, talvez…
Os Baye Fall (Wolof: Baay Faal) são adeptos do muridismo (um ramo do sufismo, corrente mística do Islão) que considera o Sheikh Amadou Bamba (Serigne Touba) o grande mensageiro de Deus. 
Enquanto no Islão ortodoxo, o seguidor está diretamente em contato com Deus, na conceção Baye Fall, o relacionamento com Deus é canalizado através de vários líderes religiosos, adoração que gera algumas contradições e críticas no país, pois eles dedicam as suas vidas para presentear os seus marabus (líderes). Outra diferença é que ao contrário de muitas outras culturas muçulmanas, eles não diferenciam o Islão e a cultura árabe, sendo muito mais apegados aos valores das tradições africanas. Os seguidores alegam que a atitude é mais um estilo de vida do que uma religião e ilustram: “Um homem não nasce Baye Fall, ele torna-se Baye Fall."
E sigo viagem. Cheguei a Toubacouta com o cair do dia. Foi procurar alojamento e jantar. No dia seguinte, visitei a aldeia e imediações com o Ismaila, o condutor de motorizada que me sugerira pernoitar na “Villa Dubai”.
Toubacouta é uma bonita e calma povoação localizada no Delta do Saloum, na região de Fatick, a poucos quilómetros da fronteira com a Gâmbia. Navegar no delta, no manguezal, observar pássaros, visitar ilhas de conchas, assistir a festas ou desafios de luta livre, são algumas das atividades que se podem fazer aqui. Eu não tinha muito tempo para isso e já fizera coisas semelhantes, de modo que optei por ir visitar Missirah, a cerca de 12 quilómetros. 
À medida que percorremos a estrada de terra batida, vamos observando momentos da vida local. Comunidades que vivem em cubatas de colmo, cabras e vacas que deambulam em grupo, homens que se deslocam aos locais de culto, mulheres que cultivam as hortas comunitárias. Crianças a quem ofereço piões coloridos.
Missirah é uma aldeia piscatória tradicional com um movimentado porto de pesca, localizado na orla da Floresta de Fathala, na entrada do Parque Nacional do Delta do Saloum. 
É também famosa pela sua gigantesca e antiga sumaúma (Ceiba pentandra), árvore de grande porte considerada a maior do Senegal, com uma circunferência de aproximadamente 30 metros. Com as suas raízes e ramos retorcidos a árvore tem um aspeto impressionante. É um marco local e estima-se que tenha cerca de 1.000 anos.
Regressamos a Toubacouta onde apanho uma carrinha ‘7 places’ que me leva até à fronteira.